MEMÓRIAS
VIDA E MORTE PEREGRINA
Susumu Yamaguchi
Cronista e Andarilho
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Rumo a Ouro Fino, poeira era o que não me faltava ao deixar Andradas e seguir pela estrada de terra. Alguns carros reduziam bem a velocidade ao me avistarem, mas invariavelmente aqueles com vidros escuros não o faziam, talvez porque seus motoristas vissem que eu não os podia ver. Naquele espesso pó, rastros de pedestres e de ciclistas também perdiam sua identidade em breve tempo.
Embora uma grande placa se refira a certo Festival Enogastronômico, a grande produção da região deve ser mesmo o café a se julgar pelas enormes plantações que ocupam quase toda a área visível, até as mais improváveis encostas de serras. Pelo que ouço falar desde que cheguei a Joanópolis, lá devia ser assim antes; hoje, a pastagem ocupa a área que pertencia aos cafezais e vem sendo gradativamente substituída por eucaliptais.
Como será a visão de um peregrino do futuro ao subir lentamente a Serra dos Limas e olhar para trás, como faço neste momento? Imagino que aquele um poderia ser o Benê, um amigo habituado a fazer longas caminhadas diárias com um pesado bornal. Ele traz notícias de muitos cantos do grande mundo para pessoas da pequena cidade, que sempre as recebem com renovadas alegrias ou insólita tristeza, mas nunca com indiferença.
E imagino que ele poderia correr o olhar pelo amplo vale e lembrar-se mais uma vez de nosso amigo Moisés, com quem caminhava mais longamente em seus momentos de folga do trabalho. Tomavam o ônibus por meia hora até Piracaia e voltavam andando por mais de seis horas; e, entre outros percursos, subiam a Serra do Lopo e desciam para Extrema, almoçavam em Minas pesadamente à beira da rodovia Fernão Dias e voltavam pela estrada Entre Serras e Águas, percorrendo mais que uma maratona.
Caminharam muito, eles. Mas este Caminho da Fé não fizeram juntos, e nem o farão. E nem eu, com Moisés pelo menos. Agora sigo por sobre as pegadas que ele deixou neste trecho, guardadas debaixo de poeiras e lamas de muitas estações. E oxalá Benê passe por sobre os nossos passos, um dia qualquer em que todo o cenário aqui do alto poderá estar diferente, mas que o espírito que move nossos passos nessa serra, e em todo o caminho, seja o mesmo.
No alto da Serra dos Limas, poucas casas, igreja, orelhão e bancos onde Edson e Maurício descansam e me aguardam. Um garoto louro espera em um banco a van para o último dia de aula, que está atrasada e a mãe acha que terá de levá-lo até Andradas. A outra van não o levará, passa devagar e vai embora. Nas férias ele ajudará na colheita do café, que está atrasada neste ano. Preparamo-nos para partir. A mãe chama-o para a porta de casa. Saímos da pracinha e começamos a andar. O menino parece triste. Olho para trás. O silêncio do bairro vazio também parece triste. Volto-me e sigo, devagar. Para leste, sempre.
Mais adiante, dona Natalina diz que Edgar passou em sua pousada na tarde do dia anterior e, como se sentia bem, esticou até Barra, sete quilômetros à frente. Ela mostra os cômodos que fez para acolher melhor os peregrinos. Quando são muitos, ela chama a filha e a nora para ajudar na alimentação. Habitualmente elas ficam no cafezal, mas ela mesma tem de ficar em casa para receber telefonemas e peregrinos que passam sem regularidade. Diz que tem vontade também de ir a Aparecida a pé, já até falou com uma amiga, mas tem de ter pouso no máximo com vinte e cinco quilômetros. O seu amistoso cachorro atende pelo nome de Saddam Hussein.
A visão que se tem de Barra do alto da serra é impressionante, ainda mais se sentimos dores nos joelhos. Assim como eu, Maurício começou a sentir o joelho direito um dia após a descida para Águas da Prata. Edson nada sentiu, e como não os vejo na estrada que desce para lá imagino que já tenham chegado. Agora é minha vez de descer até o pequeno bairro rural que pertence a Andradas, Jacutinga e Ouro Fino, e por isso também conhecida por Três Barras. E quem primeiro me saúda na pousada é uma alegre cachorrinha chamada Chiara.
Enquanto Edson e Maurício percorrem os três municípios da vila procurando mortadela e tubaína gelada, converso com Joelma e seu filho Kauê na pousada, onde moram também o marido João e o caçula Caio. Atendem peregrinos desde o início do Caminho da Fé, em fevereiro de 2003, primeiramente apenas com refeições no bar e alojamentos no salão paroquial. Construíram a pousada depois, e também a pequena gruta de Nossa Senhora Aparecida no quintal.
Vejo pelo livro de peregrinos que quase cinco mil pessoas já passaram por aqui, muitas apenas para carimbar a credencial, sendo cerca de setenta apenas neste mês. Folheio as páginas e encontro a assinatura de Moisés Eli Araújo, peregrino nº 1.804, em 13 de julho de 2005, há quase exatos 3 anos. Digo a ela que ele morreu em dezembro último, em acidente quando pedalava em Joanópolis.
De certa maneira, desde Tambaú vínhamos seguindo seus passos por todos os lugares que ele passou com Edson naquele ano, como ocorreu na primeira pousada em que o caminho adentra na região de montanhas, logo após Vargem Grande do Sul, onde também localizamos o seu nome. Ao saber do acontecido com Moisés, a hospedeira Cidinha Navas imediatamente escreveu ao lado: “Morreu e foi para o Céu”.
Joelma mostra uma fotografia de um casal de peregrinos em frente ao Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Vilma e Léo haviam feito o Caminho da Fé em junho de 2007, em quatorze dias. Desde novembro ele estava só, após um convívio de trinta e cinco anos. Por ela, ele peregrinou novamente em junho de 2008 e deixou ao longo do caminho uma tocante homenagem à sua memória, para os que a acolheram e também para os que não a conheceram.
Pelo pequeno povoado de São Pedro da Barra, que conta com não mais de duas a três centenas de almas, a travessia da vida prossegue incessantemente. A morte, também peregrina, às vezes demora mais de ano para passar.
Como citar:
YAMAGUCHI, S. Vida e morte peregrina. Revista Eletrônica Bragantina On Line. Joanópolis, n.60, p.-, out. 2016.
Vagueando pelo google encontrei o texto acima. Muito surpreso fiquei, pois no dia 14 de julho de 2005, caminhei com o grupo do Moisés, com ele aprendi a subir fazendo zigue-zague pelas serras íngremes e acabamos pernoitando no Minas Hotel, da dona Maria, em Borda da Mata. Uma moça do grupo, apresentava dificuldade para andar, pois havia lesionado o joelho. Cito esse episódio em meu livro “Paciência e Descontração no Caminho da Fé”, página 65. Que boa memória tudo isso me traz. Apenas que essa notícia do Moisés ter morrido três depois deixou-me constrangido.